Pequena carta para aquela moça que quando abre os olhos, eles gritam.
(03/06/11) - Desencontrado: Este
instante seria perfeito como perfeito tem sido alguns instantes de minhas
emoções primitivas. Meu ser mais natural que se esparrama no espaço dos
sentimentos e rola e constrói movimentos de um felino no lugar e avançam feito
possibilidades deliciosas de encantamento, desejos, sabores, cores naquela boca
que beijava como quem sorve uma humanidade inteira de todas variáveis
existentes e as que existirão. Não foi um beijo. Foi o beijo carregado de toda
minha primitividade autêntica e apócrifa ao mesmo tempo. Algo entre o real e o
inefável. Enquanto beijava podia ver meus olhos brilhando o sol, sentir meus
órgãos se contraindo e preparando uma erupção cataclísmica. Podia sentir minhas
mãos lá, muito além, como que modelando uma divindade. Podia sentir você entre
a entrega e a fuga, mas não podia imaginar que após aquele momento ouviria
aquelas frases que ouvi. “Posso perder tudo por isso”.
Tudo
do instante se desencontrou e uma tempestade de culpas teimava em insurgir e me
afundar e nada via e nada ouvia e nada passei a sentir além do processo diário
de construção de absurdos. Comecei a sentir um sabor ocre na boca e uma náusea
passou a perambular dentro de mim e um desejo de nada, sem começo, nem meio e
nem fim passou a ser instantaneamente meu desejo. Quase uma cólera de
pensamentos passou a ser mastigada e cuspida do meu cérebro para cima e
retornavam ao meu rosto em forma de rubores, vergonha e indignidades. O destemido selvagem trocou de lugar com o
amedrontado homem “classe média”, com seus valores éticos e sua postura de bom-mocismo.
A elegância se foi e com ela todo o desejo. Fiquei em silêncio, velando aquele
momento que caiu em decúbito, morto logo após o nascimento. As horas passaram a
escorrer feito sangue entre os dedos e um cheiro de minutos murchos tomava todo
espaço de todos os lugares. O felino ancho se encolhia no passar das horas e
deitava no tempo como algo hibernando as emoções corroídas por pensamentos de
culpas e buscas de cousa alguma. Vontade de trocar de tempo, de sentimento, de
olhar. Vontade de desencontrar-me desencontrado e aos pulos de uma fênix ir
comer todos os paralelepípedos das ruas e sorver toda poeira dos caminhos.
Nenhum
lado vê nada. Se ficar e atendo meus desejos é o mal e se abandono é o mal, se
atendo seu desejo é o mal e se apenas permaneço também não há nada de bom.
Tortura e autoflagelo já são uma constante e de nada adianta triturar uma carne
estragada. Não adianta dar um caminho a uma alma que se perdeu sem jamais ter
se encontrado. Ah, o amor. Se encontrasse o que tens em outra mulher me
encontraria também ali.
Por
que o amor não se basta no sentir? Por que tenho que sentir de você pra dar
sentido o meu sentir? Nada quero deste mundo a não ser estar primitivo.
Incivilizadamente bárbaro.
Todo
este pensar me arremeteu às sociedades coloniais até as atuais. Uma população
de migalhas, escravos de restos e percursos obtusos... Eu sou selvagem demais
para conviver com isso de forma indolente e conivente. As sobras e os restos
dão o tom da aspereza dos cotidianos cego de alguém que não tem sensibilidade e
percepção de mundo. O que querer? Restos e migalhas? O que queriam os escravos?
As senhoras de engenho e suas sinhazinhas? Obedeciam e obedecem e ainda assumem
uma postura de senhoras de engenho e sinhazinhas. Uns raros desgarrados
formavam seus quilombos e superavam-se pela barbárie da atitude de se libertar.
Essa barbárie é meu norte, minha percepção, o meu desejo.
Os
desejos são um sequencial da vontade do outro. É o outro dono e domina todos os
seus quereres e agora tornaste máquina de produção em série preconcebida e sem
imaginação. Todo esse pensar me faz desconfiar desse universo organizado e
esfarelado de pequeninices que nos dão para acharmos que vale pena se submeter.
É como dar um pouco de comida a um escravo para não perder a peça e não amargar
o prejuízo.
A
única vida que tens está submetida a permissões, a bondades, a pequenos farelos
de satisfações para garantir uma falsa sobrevivência. Uma falsa ideia de prazer
que desconfio és incapaz de sentir e menos ainda de proporcionar a outrem. E,
sequer tem consciência de que existe nesta vida o prazer mesmo porque jamais a
percebi inconsciente porque eles não deixam...
Desconfio
de quem não tem angústias e desconfio de pessoas que não cometem loucuras e
seguem linearmente a bestialidade insossa e atônita de ver o mundo sem
mergulhar, sem se entregar e não passeia pela margem.
Não
perco porque não há o que perder. De minhas mandíbulas rasgo a carne sempre em
busca de minha identidade raiz, de linhagem ferina e elo perdido. Essa merda
toda de amor já foi longe demais e o sentimento original, matriz, já assumiu
cópias de um sentir cotidianamente repetitivo e comum. O que me engrandeceu
agora vai me tornando pequeno, vitimado, raso, escravo, servil, e o que é mais
espantoso, concedido, aceitável.
Gosto
de estar ancho no mundo, gosto de me ver felino rasgando o espaço em saltos de
conquistas e vitórias. Gosto da minha imagem em movimentos aleatórios de
vencedor. Vencedor não de suas causas e lutas, mas vencedor por minhas causas e
minhas lutas, (tipo uma palavra nova para um momento que vier). Daqui de onde
estou eu posso ver os mundos, muitos mundos e gosto de poder optar em transitar
em vários. Todos
os mundos nos dão possibilidades infinitas. Menos um. Este, parado em que
obedecemos a vontade, o olhar, a coerção, do outro.
Estarei
sempre por aí, espreitando o mundo com desconfiança e amando as pessoas na
inocência do sentimento das virtudes caçadoras e guerreiras. É minha maneira de
estar. Com as convicções de que migalhas
são para quem as faz por merecer. Eu por mim acho que hoje, especificamente,
prefiro passear num corpo de mulher (é sempre um mundo) e descansar com ela
todos os nossos desejos contentados.
Se
ela disser “Posso perder tudo por isso” eu vou virar de lado e na leveza de um
pensamento curto, reconhecer minha estupidez em não saber o que é tudo quando
não se aspira.
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